30 novembro, 2006
Gotas de mel
Uma e outra vez me perco entre os silêncios. Ainda que continues a gritar, os meus ouvidos fecharam a qualquer tentativa tua em me derrubar pelas palavras. Entre presa e predador não há uma vitória justa. Nesse desafio, ou desatino, final decici escapar através da ilusão dos meus jardins plantados à beira mar... Ainda ontem o céu me parecia azul, salpicado aqui e além pelos meus próprios sonhos que deixei apagar.
São como as raízes que se estendem, são como as garras de uma ave de rapina, são assim os meus dias que se prolongam à tua procura...
Gota a gota vai caindo o sabor a mel que ainda ardia, quente...
Ainda lembro o cheiro colorido, adocicado, atraente, misterioso do proibido. As tentações são assim, deliciosamente viciantes... Recordo o sorriso inicial com que me deixava ir, como se tudo não passasse de uma pastilha de morango roubada em qualquer lado... Vagueio pelas imagens mentais que tento imaginar do riso descontrolado, dos gestos impensados causados pelo estado de embriaguez provocado pela negação de todas as regras...
Agora já não rio nem sorrio, nem sequer a um esgar de contentamento me consigo obrigar, é que de repente lembrei a alienação de tudo isso e o sabor amargo que me ficou na boca.
O mel foi-se... caiu, ardeu... Restou o fel, ficou o frio...
23 novembro, 2006
Gotas de chuva
"Penso em ti", dizia ela baixinho, murmurando à chuva que batia nos vidros da janela querendo entrar. Uma mão que se estica e tenta agarrar o pouco de ar que resta no próprio reflexo como se a imagem esbatida pudesse mais que o próprio ser. De olhar perdido vagueava mentalmente para lugar nenhum, como uma borboleta perdida a quem tiraram o norte e deixou de ter aquela flor onde tanto gostava de esticar as asas e repousar. Levada pelo vento, sem força para resistir ao movimento perpétuo das correntes de ar que outrora a fizeram planar... "Volta depressa", pedia ainda que soubesse que jamais o iria ter de volta. A metamorfose não tinha sido única, fora partilhada levando, porém, a caminhos diferentes, a mares profundos e distantes como duas esferas tangentes que perderam o ponto de contacto, dois universos paralelos sem porta de comunicação. Estava tão longe, não só dele como dela própria e perdida numa mente que teimava em distorcer tudo o que de belo se apresentava. Faltava a vontade, imperava a apatia, o inócuo, o deserto árido e estéril onde nem o casulo consegue manter o pulsar de uma qualquer crisálida. E é nessa espiral que se perde e recua ao tempo de larva, de nova mudança, metamorfose... Basta um pequeno passo, um gesto, um toque e todas as partículas se agitam, todas as moléculas conferenciam para debaterem a reacção que se segue. Hoje é exotérmica, explodiu depois de implodir. Já não é larva nem célula, reduziu-se a átomo e percorre todas as histórias da História e de tempo idos enquanto a crosta terrestre borbulhava de calor. "Perdi-me de ti", escreve agora no vidro embaciado pelo bafo quente da respiração entrecortada pelo próprio pensamento. De volta ao quarto, volta ao mundo e à realidade, volta à chuva que ainda não parou de cair e se mistura com as próprias gotas que lhe rolam pela cara. Volta a si...
20 novembro, 2006
Boa noite...
À noite a rotina era sempre a mesma. Antes de se aconchegar entre lençóis e cobertores, antes de se deixar envolver pelos braços de morpheu, havia sempre aquela chamada. "Olá" dizia ela com aquela voz que se deleita à espera de uma resposta doce. "Como correu o teu dia?" perguntava enquanto pensava que o seu teria sido melhor na companhia de quem estava do outro lado. A resposta era invariavelmente a mesma "correu bem". O discurso ficava assim, em suspenso como uma reticência que se prolonga pelo infinito. O diálogo era interrompido pela cumplicidade do silêncio e corrompido pela impaciênciência que ela tinha. Faltava a voz, o som, a respiração agitada ou o emaranhado de sílabas inaudíveis pelo sono. Noites havia em que o verbo era rei, em que as palavras se atropelavam na boca dela, todas querendo sair. Mas a rotina, como ela própria, encarrega-se de esmorecer a vontade, o desejo da partilha. E a fonte de onde brotavam sílabas tónicas e átonas, verbos reflexos e compostos, metáforas, hipérboles e perífrases secou sem aviso. A voz dela, cansada, perdeu a força para falar, rebater, contra-argumentar. E num segundo apenas, que é quanto basta às cordas vocais, remeteu-se à ausência da paralinguagem. Foi bom, foi muito bom e por isso pela última vez disse "Boa Noite... meu amor".
17 novembro, 2006
estória de um beijo
Foi numa noite quente que ela se deixou levar por uma conversa mansa e eloquente. Antes que os corpos se aproximassem, jogaram pelos caminhos sinuosos da sedução, dos sorrisos trocados pelas piadas que se contavam sem pudor. A sala animada tornava ainda mais frenéticos os movimentos, quais duas labaredas que dançam ao sabor do vento e da paixão irracional. Mas o bater das asas não chegava, latejavam os sentidos e a sede de um beijo. E todos os espectros que a rodeavam a iam manipulando até que chegasse perto do seu anjo negro caído. A tentação, o fruto proibido, o beijo roubado que ela esperava mais que simplesmente o roubar... Nem seria tanto esse contacto carnal que a deixavam num frenesim, mas sim a malícia explicitamente implícita entre presa e caçador(a). Trocavam de papéis ao ritmo da própria música, ao som das pulsações. Um toque, um gesto, uma palavra, um sussurrar e a respiração que não acalmava, nem que por um instante. Entre voltas e reviravoltas, e um mundo virado ao avesso, enlouquece-se caçador e caça que desistem de jogar... ou talvez não. O ambiente de corpos que se moviam, cada um a seu ritmo e numa própria cor tornou o espaço demasiado inebriante, demasiado pequeno, explícito... Um beijo deve ser roubado, não retirado ou descolado da boca que exige sempre mais. Ela saiu de cabeça atordoada pelo som e pela música que lhe percorria o olhar em solfejo. Cá fora falaram do dia e da noite, do sol e da lua, do rio e do mar, deixando fugir, pelas horas da madrugada, aquele fogo que a palavra fazia extinguir. O beijo? Esse foi roubado... nem por um ou por outro, mas pela própria noite que, entre claves e semi-colcheias perdidas no ar em torvelinho, se encarregou de os fazer calar...
13 novembro, 2006
07 novembro, 2006
Cócegas no coração
"Estás a fazer-me cócegas", disse o meu sorriso num suspiro, ténue, acompanhado pelo movimento de milhões de pequenos espasmos desalinhados que culminaram nessa doce gargalhada que os olhos fez chorar. A pele é um órgão curioso, reveste e e veste, sente-se e faz sentir, cresce e renova sem esquecer as marcas que vão ficando vincadas como se de um tronco de árvore se tratasse. Olho as minhas mãos, os dedos que tento esticar até atingir o infinito... Olho os braços, as pernas, o corpo que se arrepia sob o toque quente de um beijo. Essas marcas indeléveis que vão ficando e às quais se acrescenta um gosto, um cheiro... Tudo na minha pele que já não é tronco mas continua a estender-se em busca do céu. Agora é folha caduca mas persiste em deixar uma e outra estória, tantas histórias contadas pelos milhares de filamentos que cabem tão somente na palma da minha mão como os grãos de areia que tento guardar sem que escorram pelos dedos como escorrem as memórias mais frágeis. Mas esta única, esta que de repente li de uma só vez, sem recorrer a uma bola de cristal, fez-me sorrir.
Ler-te na minha mão fez-me cócegas no coração!
01 novembro, 2006
Para onde vão os sonhos não sonhados?
Acordei com a estranha sensação de estar sem compasso, de não ter aquela melodia que vou ouvindo mentalmente e que criei como companhia... Ainda a tentei procurar entre as penas da almofada, manchada pela minha solidão. Para onde vão os sonhos não sonhados? Onde se guardam as esperanças que desaparecem? Para que lado seguiu o meu «eu» sem me ter chamado para o acompanhar. O caminho parece cada vez mais longo e sem aquela musiquinha do bater do meu própriio coração. Mentalmente recuo às lembranças de dias doces, de beijos ternos, de tardes partilhadas e enroscadas...
Uma e outra vez fui cendendo aos olhos azuis que teimavam em cruzar os meus sonhos sem que conseguisse resistir ao reflexo das ondas imensas que se perpetuam até uma ignota ilha de verde pintada. Basta! Dói demais o eco das vozes que ainda ouço e calaram a minha melodia. A passos dados aumenta a distância entre mim e o meu ser, como se deambulasse pela cidade sem me aperceber das luzes e sons que me rodeiam... Foi-
-se a gargalhada estridente daquela menina que brincava à chuva, foi-se o arco-íris, foi-se o sentimento visceral da tranquilidade, foi-se a alma e restou apenas o corpo que se arrasta através dos dias. Já não acordo... se nem cheguei a dormir. Já não respiro... se o ar que entra não parece ser suficiente. Já nem vejo porque os olhos desistiram de sequer olhar. Quero de volta a minha melodia para voltar a sonhar....
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