18 junho, 2007

chuva de mudanças

Há noites assim, em que as horas demoram a passar e a febre faz subir a temperatura de um simples desejo partilhado num murmúrio. Blys olhou a tempestade que se aproximava com o cheiro húmido de terra molhada, de pedras de granito desgastadas em pequenas partículas de quartzo, feldspato... Limpa-se o chão, varre-se o ar... e as lembranças. O mundo pesado de memórias mais que de átomos ou matéria. São os anos que se acumulam em olhares e sons e cheiros trocados, partilhados e que se tornam inconfundíveis. Por isso, aquele cheiro a gotas, a água, a gente... o odor dos cabelos, das peles, das carnes entranhadas, das bocas esquecidas, de suor, transpiração, raiva até, a emoção, recriaram a imagem que guardava há tanto tempo no canto de um órgão palpitante chamado coração. A tempestade da mudança... Há sempre tantos sinais a avisar, muda a cor do céu, transforma-se a pressão do ar... e até o seu espírito dizia baixinho que algo estava para acontecer. "Não", pensava. "O sol vai brilhar", convencia-se em vão. Ah a inocência... Muda-se o sorriso, perde-se a cor, muda-se o olhar, perde-se o sabor!... e a chuva que continua a cair... Tantas gotas, a imensidão. Eis que acaba no chão, sentindo cada partícula ao pormenor, decifrando até a textura e o odor... Blys queria o Mundo sem o viver intensamente mas foi a chuva que, entre ritmos e ventos, mudanças e alentos lhe suspirou ao ouvido que cada gota contém um universo apenas visível a quem consegue expandir, num só segundo, a imensidão da mente.


Sweet sweet rain
Feel the rain on your face
Let the Heavens open
Feel the rain
Feel the rain

06 junho, 2007

Era uma vez... (1)

Era uma vez uma fada. E a fada vivia num castelo, desses encantados, com véus e flores a cobrir os parapeitos das janelas, elas próprias encantadas. Como todas as fadas, vestia de cor-de-rosa e passeava com varinha de condão, sempre acompanhada de pequenas borboletas, libelinhas e colibris. Tinha cabelos loiros e olhos brilhantes de luar, mas faltava-lhe um príncipe para beijar. Naquela manhã encantada, a minha fada encantada, como o são todas as fadas e também todas as manhãs, ergueu a varinha para fazer um vestido. Não um vestido qualquer, que nenhuma fada aceita simples tule, organza ou cetim. Teria de ser um vestido especial, em que todos os elementos estivessem conjugados numa perfeita união. Não poderia faltar o brilho do sol, ou os raios da lua, nem sequer as ondas do mar ou a leveza do próprio ar. Com aquele vestido, a minha fada queria voar...
Convocaram-se os senhores dos mares, os reis da terra e deuses do céu, todos num concílio para que se pudesse criar tão especial vestido. E passaram-se as horas encantadas, por relógios encantados espalhados por tantos e tantos quartos enfeitiçados pela magia de uma inebriante sedução que emanava do ser feérico. Nada parecia agradar, nada parecia ser verdadeiramente especial para uma fada, que como todas, padece do romantismo das flores e do encantamento dos animais que se encontram una única vez para partilhar toda uma vida. Sim, a minha fada encantada e enamorada queria o que nem os deuses tinham para oferecer. Faltava-lhe o beijo encantado do príncipe, sem o qual não fazia sentido fazer tal vestido.
As notícias logo se espalharam pelo reino encantado, como todos os que fazem parte de contos de fadas. "Onde estará o meu príncipe?", perguntavam os caracóis loiros do cabelo encantado da fada encantada. O seu pedido ecoava em música nos ouvidos de todos as criaturas encantadas do bosque encantado que envolvia o reino encantado. Todos procuravam o príncipe do beijo... onde estaria? onde estará? onde estás...?